7 de maio de 2010

OBSTETRÍCIA: DO SONHO AO PESADELO

Artigo publicado no Jornal da USP, no qual obstetrizes recém-formadas se manifestam contra o COREN-SP.

Cláudia de Azevedo Aguiar (Obstetriz formada pela EACH-USP e mestranda da Faculdade de Saúde Pública - USP. claudia.azevedo@usp.br)
Maíra Fernandes Bittencourt (Obstetriz formada pela EACH-USP. mairafarfala@yahoo.com.br)


Em 2005, a USP, contemplando um dos projetos pedagógicos mais atualizados e modernos do ensino superior brasileiro, foi expandida com a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH). Dentre os cursos desta unidade, está a formação em Obstetrícia - hoje com duas turmas já formadas.

Esses profissionais, tal como definem o site da EACH e o catálogo "A Universidade e as Profissões", estão habilitados para atuar de forma autônoma ou integrada à equipe de saúde na assistência à gestação e ao trabalho de parto de baixo risco, ao parto normal e ao puerpério (pós-parto).

Para além do acréscimo de vagas na USP, a retomada do curso se deu por uma necessidade de mudanças no cenário da assistência ao parto e nascimento do país. Uma pesquisa rápida aos indicadores de saúde obstétrica e neonatal brasileiros fala por si só. Índices indiscriminados de cesarianas, associados às altas taxas de morbidade e mortalidade materna e infantil ratificam a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde (MS) para a formação de profissionais capacitados.

Do ponto de vista legal, o profissional em Obstetrícia - denominado obstetriz – está inserido na Lei do Exercício Profissional de Enfermagem, e, portanto, deve ser registrado pelo Conselho Regional de Enfermagem (COREN). Fato é que isto só tem ocorrido via ação judicial. Os motivos? É o que se pretende abordar neste artigo.

Em suma, os alunos da primeira e segunda turma, ao se formarem, dirigiram-se ao COREN-SP para realizarem seus registros, quando foram informados de que o conselho "não reconhece" o curso. Segundo o presidente do COREN-SP, sr. Cláudio Alves Porto, a obstetriz contemplada na lei de exercício da profissão de enfermagem não é a mesma formada atualmente pela USP, mas sim aquela do já extinto curso de Obstetrícia da USP da década de 70.

Uma ação judicial fora aberta, então, pelos alunos contra o COREN-SP e, até o momento, todas as instâncias foram favoráveis aos ex-alunos. Como consequência, o conselho foi obrigado a registrá-los, sob pena de lei.

Porém, quando se esperava pela bonança, novas dificuldades surgiram, resultando numa empregabilidade desses profissionais menor do que 10%, em dois anos. Falta de conhecimento do mercado, levando a não contratação dos obstetrizes? Não apenas!

Em sua edição de novembro passado, a Revista de Enfermagem do COREN-SP divulgou uma matéria intitulada "Graduação de obstetrícia da USP Leste: esclarecimentos e alerta do COREN-SP". Nela, a idoneidade, o conteúdo e a abrangência do curso são ignorados e o profissional por ele formado é denominado incompetente e mal capacitado. Além disso, percebe-se na matéria a reiteração de argumentos inconsistentes para a não contratação de obstetrizes, já que este ato culminaria em problemas ético-institucionais para os contratantes e, no caso dos obstetrizes, o exercício ilegal da profissão.

O referido artigo alerta, ainda, para o risco do enfermeiro responsável nos campos de estágio, que ao receber os estudantes de uma profissão ilegal, termos do artigo, pode responder judicialmente pelas iatrogenias geradas em função do despreparo dos estagiários. Os alunos, ao contrário, sequer responderiam ou seriam penalizados, uma vez que não possuem uma profissão regulamentada.

Sobre a afirmação de que a(o) obstetriz possui uma profissão ilegal, basta que se consulte a já citada lei. Quanto ao risco dos profissionais de saúde cometerem iatrogenias, sabe-se que, quaisquer que seja a sua categoria, é presente e, para isso, existem os órgão regulamentadores e fiscais.

Como o próprio código de ética de enfermagem orienta, entendemos que a atuação dos profissional de saúde deverá ser, a todo momento, criteriosa, e que, inicialmente, deverá se valer da supervisão e orientação de colegas mais experientes, para que a assistência ocorra de forma segura.

Vejamos algumas contradições do sr. Porto: o conselho credencia os obstetrizes, habilitando-os para o exercício da profissão, mas, ao mesmo tempo, não os recomenda. Além disso, ao mesmo tempo em defende que o obstetriz não é enfermeiro e, portanto, não deve ser cadastrado como um, alega que o conselho não possui meios para produzir graficamente uma credencial que diferencie obstetrizes dos enfermeiros. Sendo assim, questionamos: existe alguma dúvida sobre o inevitável conflito que se faz presente e crescente? A quem este senhor está atingindo? Somente os obstetrizes? Fica aqui o nosso alerta aos enfermeiros.

Vale destacar que é de grande interesse dos obstetrizes uma cédula de registro profissional própria, já que não desejam exercer quaisquer outras atividades que não aquelas de sua competência.

Fica claro no julgamento do COREN-SP ao desqualificar os alunos e os profissionais formados em Obstetrícia, que os docentes da Universidade são incapazes de formar no sentido teórico e prático estes estudantes. Julgam que os alunos em campo de estágio e os obstetrizes já formados serão sempre despreparados para exercerem a assistência em saúde da mulher. E nos perguntamos em que momento ocorreu esta avaliação, quais os critérios utilizados e por que são tão discordantes da avaliação realizada pelos renomados docentes do curso e por diversos estudiosos da área de saúde materna e infantil.

Se o projeto pedagógico do curso de Obstetrícia não contempla todas as disciplinas e estágios da formação de enfermagem, a resposta é simples: o curso de Obstetrícia não forma enfermeiros!
Talvez o maior problema do COREN-SP, atualmente, esteja em tomar para si uma função que não lhe cabe: avaliar cursos superiores. O curso de Obstetrícia, como todos os outros cursos superiores do país, passou pelo processo de avaliação do Ministério da Educação cujo resultado foi a aprovação do seu reconhecimento, conforme Portaria CEE-GP nº 368/2008, publicada no D.O. de 23/06/2008.

Consideramos extremamente arbitrário e retrógrado dizer que os obstetrizes formados antes da década de 70 não são os mesmos profissionais formados neste novo curso. Será que o COREN-SP defende, portanto, que a formação dos profissionais é estática? Quer dizer então que os cursos de enfermagem não passaram por reformulações desde a década de 70? Será mesmo que os Conselhos devem ser conservadores ao ponto de não acompanharem as mudanças da sociedade?
Novas perspectivas, novos paradigmas implicam nas mudanças curriculares e inclusive na criação e retomada de novas profissões. E neste sentido as instituições competentes fazem seu trabalho para aperfeiçoar e melhorar estas formações, como faz a USP.

Durante o curso de obstetrícia, os estudantes são a todo momento levados a refletir sobre a importância das mudanças de paradigmas em relação ao modelo hegemônico de assistência obstétrica. Esta formação ressalta a importância de estar focado na mulher e no bebê e não apenas nas técnicas de rotina. Valoriza, ainda, que todos os procedimentos e atenções durante a assistência estejam sempre de acordo com as evidências científicas. Perguntamo-nos se o que assusta este Conselho não seria, na verdade, o questionamento do curso em relação ao atual modelo de assistência à saúde da mulher.

É extremamente frustrante que profissionais recém-formados tenham que, além de enfrentar as dificuldades para o ingresso no mercado e os conflitos entre os modelos de assistência, ter também que se defender e lutar contra quem deveria estar os apoiando. Vale lembrar que os Conselhos não precisam estar restritos a somente uma categoria, e parece ser fortalecedor e inteligente que possam abrigar categoria afins, como é o caso do CREA (Engenharia, Agronomia, Geologia, Geografia e Meteorologia) e do CREFITO (Fisioterapia e Terapia Ocupacional).

Obstetrizes têm ocupado as primeiras posições em concursos públicos, no entanto, estão sendo, humilhantemente, proibidos de atuar. Quando se poderia constituir uma parceria saudável, com objetivos comuns entre estas duas categorias, percebe-se uma evidente briga política e, sobretudo, uma lamentável briga de egos. Enquanto isso, inúmeras mulheres e seus bebês - os menos beneficiados com essa união que insiste em não ocorrer – continuam carentes de mais profissionais qualificados para os assistirem.

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